27 de junho de 2010
Carta aberta à familia Espírito Santo
Cresci a ouvir falar da vossa família com uma reverência quase tão mística como a matriz bíblica do nome que vos designa.
Em 1931, o vosso avô Ricardo foi mecenas de uma obra social fundada por minha avó, e é em nome dessa memória afectiva que venho hoje galvanizar-vos.
Sabem? Herdeira genética do Salazarismo, mas penitente pelos efeitos do seu regime, sinto-me hoje ludibriada por ter dado o benefício da dúvida a quem se perfilou na defesa das suas vítimas para agora as defraudar, apropriando-se de todos os tiques, luxos e vassalagem que, rusticamente, se associam à direita, e de que toda a Esquerda persistente deveria, ao menos, recatar-se.
Na verdade, devo a meu pai tudo o que sei de política: "Nenhum sistema ou nenhuma ideologia pode hoje considerar-se a salvo de suspeita".
Lição breve, mas que sobra para enxergar quando me enganam: o nosso primeiro-ministro está mais preocupado em encobrir o lóbi argentário que o assedia do que em escorar Portugal contra a calamidade mundial que afundará, em primeiro lugar, economias frágeis como a nossa.
Todavia, presenciar os ultrajes a , que se presta - sem saber ou poder defender-se - não é um espectáculo menos triste do que assistir à demissão dos portugueses que, lesados, falidos e ultrapassados por jogadas de bastidores, contam anedotas para expurgar a impotência.
Sei que sabem: as 'classes' acabaram finalmente, não por promessas de Abril - ingénuas nesta matéria - mas porque tanto operários como intelectuais se irmanam hoje no garrote da penúria para que meia dúzia de plutocratas possam beneficiar-se com o que, em justiça, caberia a todos, segundo os chavões humanistas de que sempre se socorrem para burlar os eleitores.
Diverso, o vosso caso: o que se ouve neste momento, nas vossas costas, tanto nas salas como na rua, 'é que a força deste Governo não lhe advém dos cabelos, como em Sansão, mas da retaguarda que o vosso Grupo' lhe assegura para acautelar negócios que, com o álibi das metas europeias e a promessa de retornos delirantes, vão cavando a nossa sepultura.
'Refiro-me, claro, a todos estes investimentos - inoportunos nos prazos - em que Sócrates vem embarcando, com a chancela de consórcios financeiros onde, surpreendentemente, consta sempre o vosso Grupo: novas redes de auto-estradas, pornográficas para quem não tem que comer; o TGV para Madrid e a extravagância de uma terceira travessia sobre o Tejo; um aeroporto importante do ponto de vista logístico e estratégico, mas sem tráfego que justifique um projecto faraónico.
É, pois, na qualidade de patriota angustiada, que vos rogo que recordem o seguinte a quem, de entre os vossos - tão endividado como nós; e a outra escala - possa também ressentir-se.
Ao contrário do vosso Grupo - e doutros, claro, mas com menos pergaminhos - não teremos a Suíça como abrigo quando a lâmina da bancarrota nos cortar a jugular, pelo que será aqui mesmo, em solo lusitano, desonrados e perecendo entre escombros,que exalaremos o último suspiro.
Se nem isto os demover, pois então que se perfile, coerente, a fé cristã da família: estão em causa montantes capazes de salvar, literalmente, milhares de irmãos da desonra, da doença, da morte nos hospitais, sem cama
nem assistência, e do recurso ao suicídio para o qual a Estatística nos tem vindo a alertar e que disparou, em flecha, desde o princípio da crise.
Confiem: lembrar-lhes isto seria o acto mais nobre de lealdade a Portugal, tratando-se de um Grupo que, desde o Estado Novo até hoje, tem podido prosperar graças à indulgência de todos os governos e à vista grossa de um povo já exangue.
Dirão que o GES está no seu papel e que cabe a Sócrates prevenir-se; direi eu, que estou no meu, que me cabe defender a minha pátria de quem quer que a ameace.
Rita Ferro, in Expresso de 12 de Junho de 2010
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