21 de julho de 2010

O Livro dos Rostos

Qual é o interesse de ter milhares de amigos virtuais?

O nome da coisa é Facebook, o que começa logo por me irritar. Não tenho nada contra a língua inglesa - só não percebo porque me hei-de ajoelhar diante dela quando tenho a sorte de ter uma outra língua, menos internacio­nal mas menos banalizada. O português tem palavras difíceis de traduzir - não é só a sauda­de; é, por exemplo, o desenrascanço.
 O inglês também tem coisas só suas: dizer "I'm longing for you" não é a mesma coisa do que dizer "desejo-te ardentemente", até porque ninguém pode dizer isto em português sem se rir.
Como "I'm falling in love" não pode traduzir-se por "estou a ficar apaixonado/a", "estou a apaixonar-me" nem sequer "estou apaixonado". Estas três expressões não transmitem a sensação de vertigem lenta e fulminan­te de alguém que está a cair no amor. A capacidade de síntese da língua inglesa tornou-a o esperanto do mun­do e apoucou-a. Grupos de rock portugueses cantam em inglês para chegar "mais longe". O inglês torna-lhes mais fácil escrever versos curtos e que, julgam eles, entrem no ouvido. Esta facili­dade não tem compensado, e ainda bem: os cantores de língua portuguesa que conse­guem maior internacionaliza­ção são os que se dão ao trabalho de criar na língua que é sua. Os poemas que Amália cantava não eram fáceis e chegaram aos Estados Unidos e ao Japão. Como chegaram os Madredeus, Mari­za, Caetano Veloso ou Maria Bethânia. Por outro lado, as várias versões do português sempre se entenderam ­não é por escreverem actual sem c ou os nomes dos meses com minúsculas que se entenderão melhor. Os brasileiros continuarão a chamar camisola à camisa de dormir e a usar o verbo trepar como sinónimo de tran­sar, um verbo amável que os portugueses não têm. Além das diferenças vocabulares, persistirão as diferenças na gramática e na sintaxe - criativas, inspiradoras diferen­ças, que impedirão sempre a unificação dos manuais escolares nos países de língua portuguesa, mantendo a música específica de cada versão do português. Expli­quem-me, por favor, para que serve o acordo ortográfico - e digam-me quanto desse dinheiro que não gastamos a promover a cultura de língua portuguesa ele nos custou. Quanto custou o tal lince descodificador? Quanto custa­ram as reuniões dos cérebros que produziram a maravi­lha? Quantos milhões de livros se deitarão para o lixo por neles estar escrito "afecto" em vez de "afeto"?
Agora, quando me falam da necessidade absoluta de estar no Facebook, respondo simplesmente: "Não entro numa coisa que nem sequer consegue ter um nome na minha língua." Facilita. As pessoas ficam a olhar para mim com um ar apiedado, julgando-me uma provinciana sem remissão. Sucede que a mim me parece que não há nada mais provinciano do que usar palavras de outra língua. É uma batalha antiga e dura: nos idos de 90 do século passado proibi os títulos em língua estrangeira numa revista que então dirigi e debati-me com uma incompreensão quase geral, à excepção (com um poderoso p) de algumas almas mais seguras e cosmopolitas. Alegavam que o próprio título da revista já era estrangeiro (francês); eu contrapunha que, por isso mesmo, convinha que a edição portuguesa fosse inteiramente nacional. Claro que não é só o nome da coisa que me afasta do Facebook: é o próprio conceito. Se já não tenho tempo para conviver com os meus amigos efectivos (com c), para que me interessa criar milhares de outros, virtuais? Gosto das caras dos meus amigos. Tenho prazer em partilhar risos e lágrimas com essas caras. Há semanas, a minha cabeleireira perguntou-me se eu estava no Facebook - porque estava lá alguém a fazer-se passar por mim, com uma fotografia minha e tudo. O que a fez desconfiar foi que esse meu fantasma pedia que alguém o ajudasse a administrar a página. Conhecendo-me há anos a cara, o cabelo e tudo o que nesses espelhos concretos se vê, a cabeleireira estranhou que eu pedisse essa "ajuda" . Uma amiga tratou de desmascarar imediatamente o fantasma - e recebeu um telefonema dos administradores do livro dos rostos pedin­do-lhe o meu contacto para confirmarem a fraude. Claro que essa minha amiga não deu o meu contacto ­mas conseguiu, pelo menos para já, acabar com o pro­blema. Parece que já lá tinham aparecido amigos e conhecidos de há vinte anos que estavam a ficar ofendidos com a minha falta de resposta. Pois é: eu continuarei a insistir em ter uma vida real. Como se diz em "facebookês": sorry .
Crónica de Inês Pedrosa, no Expresso de 17.7.2010

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