Já nascemos envolvidos em mentiras. Desde cedo nos acostumam.
Bicho-papão, homem de areia, ladrões de crianças, figuras utilizadas para
controlar crianças pequenas através do medo – táctica que se estende por
toda a vida, mudando as formas. Imagens falsas, como o coelho que dá
ovos de chocolate, ou a figura da maldade e indiferença ao sofrimento em
nossa sociedade, a do pai-natal, excrescência vestida com as cores da
Coca-cola que induz ao consumo compulsivo, ...
na época do Natal – outra mentira, esta da igreja cristã, para fazer
frente às festas do solstício, no norte da Europa -, ensinando a fazer o
bem por interesse nos prémios e evitar o mal por medo do “castigo”, em
franco egoísmo.
Como fazem as igrejas cristãs, sem nenhuma preocupação real com o
próximo (falo apenas das instituições), além da teoria – ou diriam aos
ricos que se contentassem em ser menos ricos para que não houvesse
abandonados e explorados na sociedade.
São aceites como naturais os abismos sociais - económico,
educacional, informacional, de cidadania e dignidade, de direitos e
oportunidades. Amarga mentira. Esses abismos são artificiais,
construídos a partir de cima, para permanecer por cima. Por cima mesmo
dos governos, da política e da media, que constrói com a maior
competência as mentiras nas quais acreditamos. A população precisa
acreditar, para se deixar conduzir a sustentar e manter todo esse
esquema perverso contra si mesma.
Porque é a população quem sustenta com os impostos e trabalho, quem
constrói ruas, prédios e calçadas, quem instala, carrega, levanta,
derruba, atende, transporta, serve, limpa, cozinha, desentope, manobra,
conserta e põe a mão na massa. E é explorada e desprezada, em nossa
estrutura social. Roubada em seus direitos básicos e conduzida a desejos
de consumos e privilégios superficiais, alienada e narcotizada pela media. A parte mais indispensável, mais necessária à sociedade, é exactamente a mais maltratada, a mais perseguida, a mais explorada. E em
caso de inconformação, reprimida com desrespeito e violência. Não são
claros os motivos de tanta mentira? Sem ricos, a sociedade poderia ser
menos injusta. Sem pobres, seria impossível. São eles a base de apoio.
Impede-se o desenvolvimento do espírito humano, pois ameaçaria o
controle dos poucos dominantes sobre a sociedade. E as hipocrisias
seguem, junto com a vida. A maior parte das pessoas, abestalhada entre
os entretenimentos e os desejos de consumo, tem sua atenção conduzida
pela media para longe da política – apresentada como um mundo
incompreensível entre a falcatrua de muitos e o heroísmo duvidoso de
poucos, a hipocrisia de muitos e a honestidade de poucos -, com algo de
repulsivo, criando um clima de assunto chato, incómodo, repetitivo, no
qual é desagradável pensar.
Não é à toa. Nesse mundo, o político, se manobram as marionetas do
poder, se articulam os interesses das grandes empresas, se negocia com o património público. O poder económico local (industriais,
latifundiários e outros empresários "de peso"), sócio menor e servidor
de gigantescas transnacionais estrangeiras e nativas, controla o aparato
público, as instituições, infiltra-se no Estado através das forças
políticas, compradas com financiamentos de campanhas. A partir daí, se
espalha nos poderes da república em variadas relações, no judiciário,
nas estatais, nos serviços públicos, nas empresas prestadoras de
serviços. A coisa pública, os bens públicos, o dinheiro público,
controlados por interesses privados, fazendo fachada de democracia - só
se for a "cracia do demo". Esse é o mundo dos crimes contra a
humanidade, do roubo dos direitos básicos à maioria da população para
privilegiar essa minoria de serviçais de luxo - que fazem pose de
"superiores"- e gerar ganhos além da nossa imaginação para os
pouquíssimos realmente poderosos – acima até dos Estados nacionais, a
ponto de controlar as políticas públicas. Os povos precisam estar de
alguma forma narcotizados, precisam ser ignorantes, desinformados,
enganados, para se deixarem conduzir. Simples. Destrói-se o ensino
público, controla-se o ensino particular, domina-se a media e o trabalho
está feito. Fácil, quando se tem o governo, legisladores, altos postos
do judiciário e a media na mão. E a garantia das forças de segurança,
públicas e privadas.
Dizem que o mundo é uma guerra, a vida é uma competição e que todos
são adversários, em suas áreas. Mentira. Somos irmãos seguindo a
aventura da vida, nos desenvolvendo e procurando formas de resolver
nossos problemas, solidariamente. Somos gregários, precisamos de
harmonia, não de competição. A media é que nos instiga uns contra os
outros, com a ideia furada de “vencedor” e “perdedor”. Nossa união
apavora seus patrões. E a eficiência é tanta que mesmo entre os que se
dizem revolucionários se vêem esses padrões de comportamentos e valores.
Passar da competição à cooperação é um degrau da evolução humana.
Dizem que felicidade é consumir, é desfrutar e usufruir de luxo e
fartura. Mentira. O mais próximo de felicidade que temos é gostar e ser
gostado, é abraçar e ser abraçado, é se sentir útil à colectividade, é
beneficiar os demais e confraternizar com todos, aprender e ensinar,
ajudar e ser ajudado. A media nos induz ao consumo egoísta, ao
isolamento, condiciona o valor de ser humano à posse, ao poder económico, ao nível de consumo, e as pessoas se sentem inferiorizadas ou
superiorizadas, conforme esses padrões, se envergonham ou se orgulham
por esses factores externos. Induções. Os valores reais são abstractos,
estão no ser, não no ter.
É o consentimento geral o que sustenta essa estrutura. A crença nas
mentiras plantadas. Acreditamos e reforçamos as correntes da nossa
própria escravidão. Cada um de nós consente, em maior ou menor grau,
esse estado de coisas. Cada um de nós pode começar o trabalho em si
mesmo, que vai encontrar o que fazer, se for sincero consigo e tiver
humildade para encarar as próprias falhas e condicionamentos. De dentro
de si é que o trabalho de mudança externa ganha força, na profundidade
das raízes, da sinceridade do sentimento. Pois é do trabalho interno que
emanará a força avassaladora de uma verdadeira revolução. Cada
revolucionário precisa começar o seu trabalho em si mesmo. Ou será mais
um desses superficiais e arrogantes, intolerante e conflituoso, pronto a
usar os recursos convencionais dessa estrutura doente, ou apenas
reforçará a imagem do revolucionário chato, incómodo e indesejável.
Ninguém pode se dizer isento de induções inconscientes. Desde
pequenos recebemos cargas maciças de publicidade – televisão, rádio, outdoors, folhetos, jornais, revistas, nos autocarros, trens, barcas, metros, nos telefones, em cartazes pela rua, na repetição dos refrões
das propagandas. E dali não vêm apenas produtos e desejos de consumos.
Embutidos, estão valores sociais e pessoais, objectivos de vida e
esperanças, criminosas mentiras detalhadamente preparadas pelas empresas
(publicitários e até psicólogos, sociólogos, pedagogos e
advogados) e implantados pela media.
Cabe a nós destruir essas correntes, desacreditando-as dentro de nós
mesmos e, a partir daí, contagiar à nossa volta, até onde pudermos
alcançar. Nós, os que enxergam as correntes, os que não acompanham o
gado e não se deixam enganar tanto, os que nos debatemos contra as
pressões e lutamos por uma sociedade menos injusta, menos perversa e
menos suicida. E mais humana, mais solidária, mais cuidadosa e sincera
com todos os seus membros. Enfim, uma sociedade livre das garras de
elites, ao serviço de todos.
Eduardo Marinho
http://www.observareabsorver.blogspot.com/
e
http://www.oarquivo.com.br/
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