12 de maio de 2012

Quando os tribunais rimam com repressão

Está a tornar-se cada vez mais evidente que a crise está a acabar com o Estado de direito e a retirar-nos a liberdade.

Qual é o momento em que aquilo que parecia normal se torna intolerável? Que gesto transforma a submissão em recusa? Olho uma imagem. As fotografias são a prova da existência do gato de Schrödinger. As pessoas estão simultaneamente vivas e mortas. Na imagem de que falo vêem-se centenas de prisioneiros iraquianos vigiados por militares iranianos. O registo data, creio, dos anos 80, durante a guerra entre o Irão e o Iraque. A composição dos corpos não tem arte, mas há qualquer coisa que espanta. No meio dos muitos prisioneiros a fazer as suas orações diárias há três que estão em pé em posição de desafio. Tornaram o momento irreversível. Preferiram levantar-se a seguir os outros. Sem um fim, sem possibilidade de vencer. Apenas um não.

 Há momentos em que um acto quebra uma paz podre e torna insuportável tudo aquilo que até àquele momento tinha parecido normal.
Quando um estado perde a vergonha, os seus responsáveis deviam perceber que depressa os cidadãos ficarão a um passo de lhe perder o respeito.
A sentença que condena um dos ocupantes da escola da Fontinha a cinco meses de prisão suspensa, por alegada agressão às autoridades, é um exemplo de prepotência judicial. A justiça foi de facto cega aos vídeos, às fotografias e aos testemunhos de população e ocupantes. O juiz acreditou piamente que mais de 100 polícias, fortemente armados, se sentiram ameaçados por 20 ocupantes e pela população da Fontinha.
É visível que a sentença é política e faz da polícia e da justiça órgãos subordinados a uma agenda repressiva. Em tempos de crise, os cidadãos vêem as suas liberdades e direitos cortados. Para gente deste teor, cabe à polícia e à justiça obrigar a população a aceitar os desmandos de cabeça baixa. A situação não é nova, há muito tempo que franjas consideráveis da nossa sociedade já não têm direitos cívicos. Quando uma rusga invade um bairro suburbano das grandes cidades as populações são tratadas como criminosos mesmo que haja provas em contrário. Sobretudo se houver prova em contrário. E pior se algum deles pretender dizer que tem direitos. Por milagre, sempre que a polícia dispara para o ar há alguém que fica estendido no chão. A explicação para a nossa justiça não está normalmente no tiro, mas na estranha altura a que voam os pobres, os negros, os imigrantes e os radicais portugueses que andam nas ruas. O que é novo nesta violência de Estado é que ela se estendeu dos excluídos às classes médias. Hoje o governo corta ilegalmente salários e reformas. Obriga pessoas que tinham compromissos familiares a não os cumprir. Empregados e reformados não conseguem pagar as casas, os remédios nem garantir um mínimo de subsistência.
Os quase 20% de desempregados existentes estão ainda pior, espera-os um longo calvário: empregos de miséria, precariedade absoluta e não saber como vão conseguir sobreviver até a uma reforma que provavelmente não vão conseguir receber.
Esta situação de total injustiça tem sido aceite pela maioria das pessoas, que baixam a cabeça, têm medo de perder o pouco que têm, e rezam para que as coisas passem. A verdade é que elas só vão piorar enquanto quem está sujeito a esta situação indigna não levantar a sua voz.
Vendem-nos que só as soluções dialogantes podem garantir a nossa saída desta espiral de empobrecimento e perda de direitos civis. Fazendo este caminho e obedecendo a estas premissas chegamos até aqui. Talvez fosse mais sábio fazer exactamente o contrário: resistir e desobedecer àqueles que violam as leis da democracia e da liberdade, mostrando que pela sua reacção prepotente e violenta não têm razão.
Numa das tragédias clássicas do teatro grego, Antígona opõe-se às leis da cidade que a impedem de enterrar o irmão. Para ela as leis da cidade não estão acima do que deve ser feito. A sua tragédia vai derrubar a tirania. Há milhares de anos, como agora, a liberdade vale mais que os repressores de turno. Basta um gesto para o perceber.

Por Nuno Ramos de Almeida, Director Executivo do Jornal I, publicado em 11 Maio 2012.

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