15 de maio de 2015

"A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO". O Legado do último Revolucionário.

  Guy Debord foi um filósofo, cineasta e crítico cultural francês. Dentro de toda a sua participação política, principalmente nos eventos de Maio de 68, esteve envolvido com a fundação e manutenção da Internacional Situacionista – grupo dedicado à crítica daquilo que ele chamou de sociedade do espectáculo, uma sociedade mediada por imagens, onde a lógica do intercâmbio mercantil atingiu toda a vida quotidiana.

 Debord denunciou a sociedade que fez de nós meros espectadores que, não encontrando o que desejam, acabam por desejar o que encontram.
 
Guy Debord em foto histórica...
Uma leitura que vive, alerta, que destabiliza e nos acossa meio século depois da sua escrita. Num registo brilhante, de recorte clássico, onde ecoam os grandes moralistas franceses do século XVII, muitas vezes a golpes de dilacerante concisão, outras balançando o abstracto num elevado grau poético, em “A Sociedade do Espectáculo”, Guy Debord traça em tom profético as misérias e as servidões da sociedade, tal como ela se configurou no nosso tempo.

Ele foi um artista de estirpe filosófica, radical, o arqui-rebelde que se orgulhava de merecer totalmente o “ódio universal” da sociedade. Um crítico visionário que compreendeu a rede de fenómenos que compõem esta modernidade. A alienação e o comodismo que marcam a pacífica derrota das sociedades subjugadas à lógica da mercadoria, num tal grau de acumulação que tudo adquire a dimensão abstracta e fantasmagórica da imagem.


 “Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação.” Em 1967, estava ainda longe a encenação da vida que a realidade virtual viria a construir, as redes sociais eram uma mera probabilidade de ordem especulativa ou ficcional, mas nesse ano foi publicada esta obra-prima onde se reconhecia que não só as relações sociais autênticas mas o próprio enquadramento, os tijolos e a argamassa que nos ligam uns aos outros, foram substituídos, passando a ser simulados. Não vivemos senão uma representação da própria vida, da qual, verdadeiramente, fomos expropriados, num modelo de escala 1:1. Um reflexo capturado numa sequência imparável, num presente constante.

Não se trata de um diagnóstico que tenha como valor capital falar uma linguagem transparente. Pode-se dizer que o estilo desenvolvido por Debord é em si mesmo hostil a uma aproximação imediatista. O próprio sentido de comunicação simplificada em que o jornalismo degenerou nas últimas décadas participa da ilusão que é denunciada. A informação que se verga ao entretenimento, a omnipresença sufocante da cultura do estrelato, as celebridades que fazem dos restantes membros da sociedade os pobres espectadores, experimentando a vida em segunda mão. “O agente do espectáculo posto em cena como vedeta é o contrário do indivíduo, o inimigo do indivíduo, tanto em si próprio como, evidentemente, nos outros.”
Reunião da Internacional Situacionista.
 Não há nada de inocente no facto de, hoje, a maioria das crianças sonharem com a fama. Não é uma forma de ingenuidade, é uma compreensão clara do que está em causa na escalada social. As celebridades, como esclarece o autor, são os especialistas desta vida aparente, são os sujeitos superficiais de todos os desejos, aqueles que concretizam os sonhos para os quais os restantes vivem. Funcionam como miragens: as personagens com as quais somos levados a identificar-nos numa compensação para a função cada vez mais acessória, ultra-especializada, da vida que vivemos. A produção procura que tudo seja substituível.

Desapossados, incapazes de verdadeiras escolhas, de uma autonomia que não milite pela lógica do consumo, os indivíduos tornam-se factores de uma ordem quantificadora, meros fragmentos, soldados da disciplina económica que levou a que o “ser” se tenha despedido da sua liberdade em troca da acumulação, do “ter, que por sua vez não passa de um efeito de “imagem”, a capacidade de “parecer” e assim assumir protagonismo nesta peça de um único acto, infinito.

Ele escreve que por trás das máscaras de total liberdade de escolha, apenas se confrontam diferentes formas – subprodutos – da mesma alienação. O espectáculo, os espectáculos estenderam a sua dominação a todos os aspectos da vida social, abarcam tudo, burocratizam tudo, a própria angústia causada pela insatisfação é só outra vertente do comodismo, e a rebelião só sabe promover-se segundo uma dinâmica “puramente espectacular”.
 Os conflitos que na nossa sociedade se representam não alcançam qualquer desvio, os opostos concebem uma perfeita simetria que tudo equilibra e anula. O próprio cinismo desta época, a desconfiança e descrença, as sensações que hoje se nos impõem de forma sintomática, foram de algum modo previstas em “A Sociedade do Espectáculo”. O próprio título foi transformado numa expressão de uso corrente, designando uma relação com o mundo saturada pelas imagens segundo uma regra que Debord formula desta maneira: “tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece”. É um conceito diluído, uma banalidade se relacionado com o verdadeiro sentido que Debord lhe atribuiu, mas essa mesma banalização não deixa de ser indicativa do alcance do seu pensamento.


O livro, que foi acusado de ser uma compreensão paranóica do progresso engendrado pelo capitalismo, lê-se hoje como a mais deliberada e veemente sucessão de ataques a uma sensibilidade que introduz em cada um dos nossos comportamentos um valor, uma forma de prestígio imediato, condicionado pelo fetichismo da mercadoria. Mas exactamente por o livro se confrontar com uma malha em que os agentes e os sujeitos se confundem – as vítimas mais que amar os carrascos se projectam neles –, não é fácil resumir a tese de Debord. A sua presciência faz com que este seja um livro que chegou hoje ao tempo da sua plena legibilidade. Hoje seria mais complicado acusá-lo de paranóia.
O seu génio não se ficou pelas palavras que bateu na máquina de escrever. A ordem social que viu despontar foi o seu alvo quando, na década de 1960, se assumiu como líder da Internacional Situacionista, uma célula de intelectuais restrita e sempre em convulsão onde confluíam todo o tipo de influências, mas cuja perspectiva sobre o mundo combinava essencialmente dois elementos: a compreensão do fenómeno da alienação bebida nos escritos de Marx e uma ênfase num tipo de pesquisas que nunca foram muito apreciadas pela esquerda tradicional – manifestações mais comuns a movimentos artísticos como o surrealismo e os dadaísmo, aquele tipo de sensibilidade que segue o lado mais irracional do desejo. “A Sociedade do Espectáculo” tem óbvios antecedentes, algumas das suas ideias não são sequer inovadoras. Pode-se-lhe traçar uma genealogia, começando por Hegel e Marx, Engels, Lukacs e a Escola de Frankfurt.

E houve contemporâneos de Debord que também desmontaram esta confluência. No mesmo ano, o seu cúmplice e depois, talvez, o seu maior rival, Raoul Vaneigem, publicou “A Arte de Viver Para as Novas Gerações”, um ensaio escrito num registo mais directo, mais humano e mais propagandista: “Consumir é ser consumido pela inautenticidade, alimentando a aparência em favor do espectáculo e às custas da verdadeira vida. O consumidor morre onde se agarra porque se agarra a coisas mortas: a mercadorias, a papéis...”
Debord foi o mais competente leitor da utopia sonhada nas faculdades de Economia.
 As duas obras assinalavam as bandeiras da Internacional Situacionista, e no ano a seguir à sua publicação o movimento viveu o seu momento de glória com o Maio de 1968, a revolta estudantil em França que realmente desafiou a ordem social, com uma série de ocupações que começaram pelas universidades e contagiaram os trabalhadores. Houve uma greve geral que contou com a participação de 10 milhões de trabalhadores. O governo e as uniões sindicais chegaram a um acordo mas nenhum trabalhador voltou ao trabalho. A greve terminou somente quando De Gaulle colocou as forças armadas nas ruas de Paris.

Debord vomitaria na cara dos nossos comentadores que enchem os canais no sinal constante para defender a condição fluente de um discurso que mata toda a crítica de relevo. Eles representam, no mais alto grau, aquilo que Debord analisou, radicalizando alguns aspectos do que é ainda actual na teoria marxista, mas indo para além dela, e que constitui talvez a sua “lição” mais importante: o principal factor de alienação consiste no processo que nos desapropria e aliena da linguagem.
Guy Debord e amigos da Internacional Situacionista

 Debord passou os seus últimos anos retirado no centro rural da França, na aldeia de Champot (Auvérnia), e em Novembro de 1994, aos 62 anos, pôs fim à vida com um tiro no coração. A sua guerra contra o espectáculo passou por uma série de manobras tácticas, “a construção de situações”, cujo principal objectivo era expor ao ridículo os seus inimigos. E cultivou-os como ninguém. Há toda uma novela de contornos em que é difícil estabelecer a fronteira entre a realidade e os rumores, o conjunto de mitos que fizeram de Debord um dos personagens mais fascinantes da história moderna. Depois dos eventos do Maio de 1968, há relatos sobre o seu envolvimento em acções terroristas em Itália e até no assassinato de alguns dos seus antigos cúmplices. Durante mais de uma década foi mantido sob vigilância pelos serviços secretos franceses, e, se a sua vida pública nunca se dissociou das suas intenções revolucionárias, o exílio que se impunha era muitas vezes perdido com travessias alcoólicas. Mas se tinha inimigos mortais, não deixou nunca de ser dos homens mais admirados entre a elite artística e os círculos dos negócios e da política franceses.
Após o suicídio, o romancista Philippe Sollers, uma das figuras centrais na cena intelectual parisiense, afirmou no “Lebération” que a bala no coração tinha “uma importância revolucionária”. Segundo ele, para Debord o suicídio era a forma mais pura de crítica do “espectáculo”. Outros defenderam que passou os últimos anos deprimido por ter chegado à conclusão de que os seus escritos tinham deixado de ser um alerta, um apelo revolucionário, e se tinham tornado uma descrição precisa da vida moderna.

Artigo de  Diogo Vaz Pinto no Jornal i de 14-05-2015

Outras fontes, Obvious e Google

15 de março de 2015

A SUÉCIA, ALI TÃO LONGE !


1. Na IX edição dos seus sempre palpitantes “Roteiros”, o sr. Presidente da República deu-se ao trabalho de explicar ao país por que razão, na célebre cimeira da CPLP em Díli, engoliu, não apenas a adesão da Guiné Equatorial à CPLP, como ainda foi forçado a engolir a forma humilhante para Portugal como foi consumada essa adesão. Segundo Sua Excelência, tal deveu-se à necessidade de não estragar o evento aos timorenses e, ao medo mais remoto de que a oposição de Portugal à entrada de um novo membro — que é, no mundo inteiro, um dos maiores exemplos de um Estado corrupto e despótico — pudesse implicar, a prazo, o fim da própria CPLP. O que mais choca no relato de Sua Excelência é a revelação de que a posição portuguesa em assunto desta importância acabou por ser determinada, ao menos em parte, por considerações cerimoniais e de última hora, com que a delegação de alto nível ida de Lisboa — o PR, o PM e essa figura decorativa que dá pelo título de MNE — se viu subitamente confrontada. Se me é permitida uma opinião de simples cidadão, eu direi que o sr. Presidente, ao ver já sentado à mesa, como novo membro da esforçada comunidade, o ditador equatorial Obiang, antes mesmo de ter sido votada a adesão do seu país, devia, pura e simplesmente, ter-se levantado e ido embora. Pessoalmente, prezo mais a honra do meu país do que o sucesso dos eventos alheios. E, quanto à ameaça do fim da CPLP, sabem os meus leitores que há muito a defendo — pela inutilidade da coisa em si (apenas uma sinecura de luxo para ex-embaixadores reformados), e pela nulidade dos resultados até hoje obtidos pela dita confraria (com excepção do igualmente vergonhoso Acordo Ortográfico). A que ora se junta a humilhação do seu fundador.



 2. Sua Excelência jurou por duas vezes, nos termos do artº 123º da Constituição, “defender a independência nacional” e só por manifesta incultura política é que pode entender que a defesa da língua que herdámos e trabalhámos durante oito séculos não integra o conceito de soberania nacional. Sob a sua égide, perante a sua absoluta indiferença e o seu silêncio tumular, Portugal vendeu também a língua à CPLP, em obediência a invocados interesses comerciais, que não são os nossos. Com a diferença de que aqui houve quem se opusesse dentro da CPLP e foi preciso recorrer a um expediente ilegítimo que o Tratado não contemplava para impor por decreto o português do Acordo Ortográfico. E agora, enquanto Sua Excelência se dedica a escrever “Roteiros” onde se exalta a necessidade de termos uma, alguma, política externa, o Governo determina que quem der erros escrevendo no português anterior ao AO nos exames, será severamente punido: é o argumento ad terrorem, visto que todos os argumentos de razão falharam a estes ‘sábios’ vendedores da nossa língua. Mesmo depois de Angola e Moçambique não terem cedido às pressões para alterarem a grafia que lhes deixámos, mesmo depois de o Brasil ter recuado, mesmo depois de um relatório da nossa AR ter desmantelado qualquer argumento técnico ou jurídico a favor do AO, os malfeitores prosseguem na sua senda, reconfortados pela indiferença de Sua Excelência. E quem paga agora são os alunos, que nem sequer podem recorrer aos apoio dos pais, pois que uma das virtudes do AO é pôr duas gerações contemporâneas a escrever português de maneira diferente. Mas, diga-me Sua Excelência: se a política externa portuguesa consiste em admitir numa coisa chamada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa um país que, sobre ser um Estado ditatorial e corrupto até à medula, não contém um só falante de língua portuguesa; ou se o principal feito da dita Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é o do ter-nos imposto pela força de uma maioria circunstancial (representando não mais de 10% dos falantes de português) uma desvirtuação total da grafia em uso, o que sobra então de política externa? Bajular Berlim e insultar Atenas, como tem feito o actual Governo?

3. Vejamos o caso comparativo da Suécia, um país à nossa dimensão demográfica e também ele periférico na Europa. A ministra dos Estrangeiros da Suécia foi convidada para discursar na cimeira da Liga Árabe, no Cairo — devido, precisamente, ao prestígio que a política externa sueca tem (é o único país que cumpre a recomendação da ONU de destinar 1% do PIB em ajuda ao Terceiro Mundo e, recentemente, foi o primeiro país europeu a reconhecer o Estado da Palestina, forçando a discussão do dossiê na UE). Mas, ao saber que ela iria abordar o tema dos direitos humanos na Arábia Saudita (onde as mulheres nem podem ter carta de condução e um blogger é chicoteado publicamente todos os meses sob a acusação de ser ateu), a Arábia Saudita impôs aos seus pares do mundo árabe o silêncio da convidada. Segundo eles, porque o discurso da ministra sueca seria uma intolerável intromissão na soberania saudita — esse estratégico aliado ocidental, que é simultaneamente o maior produtor mundial de petróleo e o berço e inspiração da Al-Qaeda e do Estado Islâmico. E, assim, a ministra veio-se embora, sem ter falado, pois que consta que Maomé não tolera que, em pleno século XXI, alguém conteste o direito de um país chicotear os seus ateus na praça pública. Mas o Governo sueco não se ficou, porque a Suécia tem orgulho na sua independência e na sua política externa. Mesmo perante um inusual levantamento dos barões da finança e da indústria sueca, o Governo de Estocolmo denunciou o lucrativo contrato de assistência militar em vigor com Riade. Diga-me lá, sr. Professor Cavaco Silva: não gostava de ser Presidente da República de um país assim? 

4. Possivelmente vamos ter agora mais um bico de obra para a nossa “política externa”: que posição tomará o Governo e o PR perante a reivindicação da Grécia de que a Alemanha lhe pague as dívidas de guerra, estimadas em 162 mil milhões de euros — o suficiente para tornar a dívida grega sustentável? É, de facto, uma chatice, sobretudo para a Alemanha e para a UE. Não há nada mais perigoso do que ressuscitar fantasmas enterrados — mas é o que acontece quando se faz política externa e se prega moral, sem saber História. E o problema é que os 162 mil milhões não são uma reclamação inventada agora pelo Governo de Alexis Tsipras ou pelo ministro Varoufakis. São o valor da indemnização devida pela Alemanha à Grécia, estabelecida pela Conferência de Paris de 1946, e de que Berlim pagou apenas 58 milhões. E são a compensação estimada pelos custos da ocupação nazi da Grécia: 300.000 mortos, um país semidevastado, um empréstimo forçado do Banco da Grécia ao esforço de guerra nazi. Não ter pago à Grécia e ter beneficiado de condições excepcionais para o pagamento da dívida global (semelhantes às que a Grécia agora justamente reclama) foi o que permitiu à Alemanha ter-se levantado das ruínas em que ficou em 45 e ter-se tornado a mais importante potência económica europeia. Dizem que a História só regressa sob a forma de comédia ou de tragédia. Mas, neste caso, não se trata de um regresso da História, mas de uma História que ficou sempre pendente. Já ninguém se lembrava da história das dívidas de guerra da Alemanha à Grécia, assunto morto e sepultado nos confins da memória de uma Europa que se reergueu e reconstruiu contra a ideia de guerra. Mas os gregos lembravam-se, e a dureza com que a Alemanha agora resolveu tratá-los (com o nosso entusiástico apoio), teve a consequência de trazer de volta aquilo de que uns não se lembravam e outros não queriam ser lembrados. Quem espalha brasas no quintal e vai dormir acorda com um incêndio em casa.

 Miguel Sousa Tavares | Expresso Semanário | 14.3.2015

20 de fevereiro de 2015

AS TROMBETAS DO PODER

O "jornalismo" económico em Portugal caracteriza-se por não ser jornalismo. Há alguns jornalistas económicos que não merecem aspas? Há sem dúvidas, mas são a excepção da excepção. E eles são os primeiros a saber que o são e como são verdadeiras as afirmações que aqui faço. Até porque fazer jornalismo na imprensa económica é das coisas mais difíceis nos dias de hoje. Fica-se sem "fontes", sem a simpatia dos donos e dos anunciantes e pode-se ficar sem emprego.

 A maioria que escreve na imprensa "económica" fá-lo entre páginas e páginas feitas por agências de comunicação, artigos enviados por auditoras e escritórios de advogados, fugas "positivas" de membros do Governo. Quase tudo é pago nessa imprensa, mas esse pagamento não é o salário normal do jornalismo, mas o seu "modelo de negócio", "vender comunicação" como se fosse jornalismo. É pago por empresas, associações de interesse, agências de comunicação e marketing, por sua vez empregues por quem tem muito dinheiro para as pagar.

 O público é servido por "informação" que não é informação, mas publicidade e comunicação profissionalizada de agências, dos prémios de "excelência" disto e daquilo, destinados a adornar a publicidade empresarial, páginas encomendadas por diferentes associações, grupos de interesse e lóbis, nem sempre claramente identificados, anuários sem que só se pode estar se se pagar, organização de eventos que parecem colóquios ou debates, mas não são.

 Um cidadão que não conheça estes meandros pensa que o prémio é competitivo e dado por um júri isento, que as páginas especializadas são feitas pelos jornalistas e que quem é objecto de notícia é-o pelo seu mérito e não porque uma agência de comunicação "colocou" lá a notícia, que um anuário é suposto ter todos os profissionais ou as empresas de um sector e não apenas as que pagam para lá estar, e que um debate é para ser a sério, ter contraditório e exprimir opiniões não para a propaganda governamental ou empresarial. O acesso ao pódio nesses debates é cuidadosamente escolhido para não haver surpresas, e os participantes pagam caro para serem vistos onde se tem de ser visto, num exercício de frotteurisme da família das filias.




As trombetas do poder (2)
 
Um dos usos que o poder faz deste tipo de imprensa é a "fuga" punitiva. Dito de outro modo, se o Governo tiver um problema com os médicos, ou com os professores, ou com os magistrados, ou com os militares, aparece sempre um relatório, ou uma "informação" de que os médicos não trabalham e ganham muito, que os professores são a mais e não sabem nada, que os magistrados são comodistas, e atrasam os processos por negligência, e que os militares são um sorvedouro de dinheiro e gostam de gadgets caros. E há sempre um barbeiro gratuito para o pessoal da Carris, ou uma mulher de trabalhador do Metro que viaja de graça, em vésperas de uma greve.

 As trombetas do poder (3)

 A luta contra a corrupção, seja governamental, seja empresarial, a denúncia de "más práticas", os excessos salariais de administradores e gestores, a transumância entre entidades reguladoras e advocacia ligada à regulação, entre profissionais de auditoras e bancos que auditavam e vice-versa, o embuste de tantos lugares regiamente pagos para "controlar", "supervisionar", verificar a "governance" ou a "compliance", para "comissões de remunerações", a miríade de lugares para gente de estrita confiança do poder, que depois se verifica que não controlam coisa nenhuma, nada disto tem um papel central na imprensa económica. A maioria dos grandes escândalos envolvendo o poder económico foram denunciados pela imprensa generalista e não pela imprensa económica, que é suposto conhecer os meandros dos negócios. A sua dependência dos grandes anunciadores em publicidade, as empresas do PSI-20 por exemplo, faz com que não haja por regra verdadeiro escrutínio do que se passa.

 As trombetas do poder (4) 

Esta imprensa auto-intitula-se "económica", mas verifica-se que reduz a "economia" às empresas e muitas vezes as empresas aos empresários e gestores mais conhecidos. Os trabalhadores, ou "colaboradores", é como se não existissem. Um exemplo típico é Zeinal Bava, cuja imagem foi cultivada com todo o cuidado pela imprensa económica Agora que Bava caiu do seu pedestal, como devemos interpretar as loas, os prémios, doutoramentos honoris causa, "gestor do ano", etc., etc.? A questão coloca-se porque muita da análise aos seus comportamentos como quadro máximo da PT é feita para um passado próximo, em que teriam sido cometidos os erros mais graves. Onde estava a imprensa económica? A louvar Zeinal Bava, como Ricardo Salgado, como Granadeiro, como Jardim Gonçalves, como… Até ao dia em que caíram e aí vai pedrada. 

As trombetas do poder (5) 

Dito tudo isto... ...a imprensa económica é uma das poucas boas novidades na imprensa em crise nas últimas décadas. Eu, em matéria de comunicação social, sou sempre a favor de que mais vale que haja do que não haja, por muitas objecções que tenha ao que "há". Eu não gosto em geral do modo como se colou ao discurso do poder, servindo-lhe de trombeta, e isso pode vir a ser um problema, até porque esse discurso está em perda e os tempos de luxo para o "economês" já estão no passado.

 O facto de ter havido um ascenso da imprensa económica ao mesmo tempo que estalava a sucessão de crises, da crise bancária à crise das dívidas soberanas, impregnou-a do discurso da moda, encheu-a de repetidores e propagandistas, colou-a ainda mais aos interesses económicos. Abandonou a perspectiva política, social, cultural, sem a qual a economia é apenas a legitimação pseudocientífica da política do poder e dos poderosos. Vai conhecer agora um período de penúria, em particular de influência, e pode ser que isso leve a um esforço introspectivo sobre aquilo que se chamou nos últimos anos, "danos colaterais", agora que caminha também para essa "colateralidade". 

José Pacheco Pereira, em SÁBADO
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