15 de março de 2015

A SUÉCIA, ALI TÃO LONGE !


1. Na IX edição dos seus sempre palpitantes “Roteiros”, o sr. Presidente da República deu-se ao trabalho de explicar ao país por que razão, na célebre cimeira da CPLP em Díli, engoliu, não apenas a adesão da Guiné Equatorial à CPLP, como ainda foi forçado a engolir a forma humilhante para Portugal como foi consumada essa adesão. Segundo Sua Excelência, tal deveu-se à necessidade de não estragar o evento aos timorenses e, ao medo mais remoto de que a oposição de Portugal à entrada de um novo membro — que é, no mundo inteiro, um dos maiores exemplos de um Estado corrupto e despótico — pudesse implicar, a prazo, o fim da própria CPLP. O que mais choca no relato de Sua Excelência é a revelação de que a posição portuguesa em assunto desta importância acabou por ser determinada, ao menos em parte, por considerações cerimoniais e de última hora, com que a delegação de alto nível ida de Lisboa — o PR, o PM e essa figura decorativa que dá pelo título de MNE — se viu subitamente confrontada. Se me é permitida uma opinião de simples cidadão, eu direi que o sr. Presidente, ao ver já sentado à mesa, como novo membro da esforçada comunidade, o ditador equatorial Obiang, antes mesmo de ter sido votada a adesão do seu país, devia, pura e simplesmente, ter-se levantado e ido embora. Pessoalmente, prezo mais a honra do meu país do que o sucesso dos eventos alheios. E, quanto à ameaça do fim da CPLP, sabem os meus leitores que há muito a defendo — pela inutilidade da coisa em si (apenas uma sinecura de luxo para ex-embaixadores reformados), e pela nulidade dos resultados até hoje obtidos pela dita confraria (com excepção do igualmente vergonhoso Acordo Ortográfico). A que ora se junta a humilhação do seu fundador.



 2. Sua Excelência jurou por duas vezes, nos termos do artº 123º da Constituição, “defender a independência nacional” e só por manifesta incultura política é que pode entender que a defesa da língua que herdámos e trabalhámos durante oito séculos não integra o conceito de soberania nacional. Sob a sua égide, perante a sua absoluta indiferença e o seu silêncio tumular, Portugal vendeu também a língua à CPLP, em obediência a invocados interesses comerciais, que não são os nossos. Com a diferença de que aqui houve quem se opusesse dentro da CPLP e foi preciso recorrer a um expediente ilegítimo que o Tratado não contemplava para impor por decreto o português do Acordo Ortográfico. E agora, enquanto Sua Excelência se dedica a escrever “Roteiros” onde se exalta a necessidade de termos uma, alguma, política externa, o Governo determina que quem der erros escrevendo no português anterior ao AO nos exames, será severamente punido: é o argumento ad terrorem, visto que todos os argumentos de razão falharam a estes ‘sábios’ vendedores da nossa língua. Mesmo depois de Angola e Moçambique não terem cedido às pressões para alterarem a grafia que lhes deixámos, mesmo depois de o Brasil ter recuado, mesmo depois de um relatório da nossa AR ter desmantelado qualquer argumento técnico ou jurídico a favor do AO, os malfeitores prosseguem na sua senda, reconfortados pela indiferença de Sua Excelência. E quem paga agora são os alunos, que nem sequer podem recorrer aos apoio dos pais, pois que uma das virtudes do AO é pôr duas gerações contemporâneas a escrever português de maneira diferente. Mas, diga-me Sua Excelência: se a política externa portuguesa consiste em admitir numa coisa chamada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa um país que, sobre ser um Estado ditatorial e corrupto até à medula, não contém um só falante de língua portuguesa; ou se o principal feito da dita Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é o do ter-nos imposto pela força de uma maioria circunstancial (representando não mais de 10% dos falantes de português) uma desvirtuação total da grafia em uso, o que sobra então de política externa? Bajular Berlim e insultar Atenas, como tem feito o actual Governo?

3. Vejamos o caso comparativo da Suécia, um país à nossa dimensão demográfica e também ele periférico na Europa. A ministra dos Estrangeiros da Suécia foi convidada para discursar na cimeira da Liga Árabe, no Cairo — devido, precisamente, ao prestígio que a política externa sueca tem (é o único país que cumpre a recomendação da ONU de destinar 1% do PIB em ajuda ao Terceiro Mundo e, recentemente, foi o primeiro país europeu a reconhecer o Estado da Palestina, forçando a discussão do dossiê na UE). Mas, ao saber que ela iria abordar o tema dos direitos humanos na Arábia Saudita (onde as mulheres nem podem ter carta de condução e um blogger é chicoteado publicamente todos os meses sob a acusação de ser ateu), a Arábia Saudita impôs aos seus pares do mundo árabe o silêncio da convidada. Segundo eles, porque o discurso da ministra sueca seria uma intolerável intromissão na soberania saudita — esse estratégico aliado ocidental, que é simultaneamente o maior produtor mundial de petróleo e o berço e inspiração da Al-Qaeda e do Estado Islâmico. E, assim, a ministra veio-se embora, sem ter falado, pois que consta que Maomé não tolera que, em pleno século XXI, alguém conteste o direito de um país chicotear os seus ateus na praça pública. Mas o Governo sueco não se ficou, porque a Suécia tem orgulho na sua independência e na sua política externa. Mesmo perante um inusual levantamento dos barões da finança e da indústria sueca, o Governo de Estocolmo denunciou o lucrativo contrato de assistência militar em vigor com Riade. Diga-me lá, sr. Professor Cavaco Silva: não gostava de ser Presidente da República de um país assim? 

4. Possivelmente vamos ter agora mais um bico de obra para a nossa “política externa”: que posição tomará o Governo e o PR perante a reivindicação da Grécia de que a Alemanha lhe pague as dívidas de guerra, estimadas em 162 mil milhões de euros — o suficiente para tornar a dívida grega sustentável? É, de facto, uma chatice, sobretudo para a Alemanha e para a UE. Não há nada mais perigoso do que ressuscitar fantasmas enterrados — mas é o que acontece quando se faz política externa e se prega moral, sem saber História. E o problema é que os 162 mil milhões não são uma reclamação inventada agora pelo Governo de Alexis Tsipras ou pelo ministro Varoufakis. São o valor da indemnização devida pela Alemanha à Grécia, estabelecida pela Conferência de Paris de 1946, e de que Berlim pagou apenas 58 milhões. E são a compensação estimada pelos custos da ocupação nazi da Grécia: 300.000 mortos, um país semidevastado, um empréstimo forçado do Banco da Grécia ao esforço de guerra nazi. Não ter pago à Grécia e ter beneficiado de condições excepcionais para o pagamento da dívida global (semelhantes às que a Grécia agora justamente reclama) foi o que permitiu à Alemanha ter-se levantado das ruínas em que ficou em 45 e ter-se tornado a mais importante potência económica europeia. Dizem que a História só regressa sob a forma de comédia ou de tragédia. Mas, neste caso, não se trata de um regresso da História, mas de uma História que ficou sempre pendente. Já ninguém se lembrava da história das dívidas de guerra da Alemanha à Grécia, assunto morto e sepultado nos confins da memória de uma Europa que se reergueu e reconstruiu contra a ideia de guerra. Mas os gregos lembravam-se, e a dureza com que a Alemanha agora resolveu tratá-los (com o nosso entusiástico apoio), teve a consequência de trazer de volta aquilo de que uns não se lembravam e outros não queriam ser lembrados. Quem espalha brasas no quintal e vai dormir acorda com um incêndio em casa.

 Miguel Sousa Tavares | Expresso Semanário | 14.3.2015
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...