22 de dezembro de 2016

LOST IN THE FIELD


Pois é meu velho, assim às primeiras, até parece que tiveste sorte.
Abandonaram-te (embora o título que deram à foto tenha sido 'Lost in The Field', 'Perdido no Campo'), num campo de cevada ou de trigo ainda jovem ou centeio, não sou especialista em agricultura mas espero que tenha acertado numa delas. A primeira vez que te vi, aqui, fiquei com inveja, coisa rara em mim mas tens de ter em conta de que sou Humano.
Fiquei assim porque também eu gostaria (quem não gostaria?) que meus últimos dias terminassem assim, no meio das ondas verdes dos trigais ou à beira-mar escutando as outras ondas.
Abandonaram-te ou quando por aí passaste disseste para com os teus rolamentos:
 - Parem, parem definitivamente vamos descansar aqui.
Foi uma deliciosa opção, se eu fosse 'carro' talvez tivesse a coragem de assim decidir, talvez.
É que para se ser carro nem todos servem.
Se te tivessem levado para um daqueles lares da terceira idade para onde levam os carros "já" velhos, estarias possivelmente derretido e transformado em uma miríade de peças espalhadas por outros como tu (mas mais jovens) ou na melhor das hipóteses em latas de conservas e conhecerias outros mundos, ou na pior das hipóteses em pregos usados naquelas caixas que transportam tripas de peixe, já imaginaste, não?
Poderias ser várias ferraduras, os sapatos dos cavalos, estarias a ser desfeito aos poucos e com muitas probabilidades de pisares montes de merda.
Entendes agora porque digo que tiveste sorte?
Percorreste muitas milhas, demasiadas talvez, vis-te muitas coisas, sabes de muitas histórias e descansas agora em silêncio. O silêncio é de ouro e o sol te banha de dourado como recompensa, eras um galã quando jovem, verdade?
Também eu nunca contei o caminho percorrido e se fala de que nunca o deveria de ter feito, um humano que se preze sabe sempre onde pisa. Tretas, meu velho, nós nunca sabemos para onde vamos, somos conduzidos meu amigo, tal como tu. Depois quando já não servimos para nada, 'esventram-nos' até ao tutano e talvez se aproveite algum órgão para outro infeliz. Poderíamos ter nascido Ferráris e teríamos o mundo aos nossos pés, perdão, ao nosso colo.
És um carro afortunado, levaram-te tudo mas vá lá saber-se porquê deixaram-te o mais bonito em ti, teu coração aí onde deveria de estar o motor e tua alma (para-brisas), pudesse eu chegar ao campo onde estás e dar-me-ia como  convidado, entrava em ti e como numa grande sala de cinema (adoro cinema, sabes?) contar-me-ias todas as tuas histórias e eu as minhas e tal como o escritor, saberás de muitas histórias horríveis e de outras nem tanto.
Tal como eu estás careca e amolgado.

Foram os catraios aos saltos em cima de ti não foram? Deixa lá, são jovens só queriam divertir-se nunca pensaram em te maltratar. Também nós já fomos jovens, tu só querias acelerar e eu só queria saltar como os macacos, ainda trago num joelho a marca de um salto que dei em cima de um teu colega abandonado junto a uma dessas mercearias já extintas onde com dois tostões comprava-mos uma dúzia de rebuçados, era a mercearia do Ti Bernardino, passávamos para um carreiro paralelo à linha do comboio subíamos ao muro que dava para a mercearia e Pum!! Lá íamos nós para cima do teu colega. Um dia, dia de todos os santos vê tu bem, calculei mal a altura não contei com os contratempos e zás!!! Um ferro que segurava o espelho já quebrado deixou-me um golpe enorme um pouco abaixo do joelho direito, serviu-me de emenda, nunca mais saltei em cima de carros de 'idade' e abandonados.
Os meus saltos foram outros, saltei tanto que me fodi com o maior salto da minha vida, mas essa é uma outra história.
Não sabes o que são tostões? Nem a maioria da malta, os humanos padecem de fraca memória, pelo menos para o que lhes convém. Tostões era uma parte do dinheiro da tua e da minha juventude, o 'Escudo' era esse o seu nome, pobres, sacanas, mas com mais felicidade ou ignorância como queiras, era assim no tempo do Escudo.
Vou-te contar um segredo, fiz da tua foto aquilo a que chamam de papel de parede, assim que ligo o computador lá estás tu no meio do trigo ou será do centeio...
Um dia, numa outra vida, serei agricultor e serás o meu trator... o contrário, dizes o contrário.
Há velho de um sacana...

FernandoPPereira


1 de março de 2016

SEM COMPARAÇÃO POSSÍVEL



Comparar a 'Bagagem' académica, profissional e intelectual de Raquel Varela, Investigadora e Historiadora (Ver o seu perfil aqui), com a de Henrique Raposo, cronista menor do jornal Expresso (Ver seu perfil aqui), é, no mínimo e como se diz na minha santa térrinha - Comparar a Feira de Beja com o olho do cu.

Não tem comparação possível, mas como vivemos numa sociedade 'moderna' mas retrógrada para não se destacar das outras que tais, tudo parece o contrário.

As elites que controlam o poder (em todas as áreas da sociedade portuguesa), não querem de forma alguma cidadãos inteligentes (porque saberiam mais que eles), dinâmicos, intelectualmente elevados, cultos. Quanto mais burros, melhor. Quanto mais imbecis, melhor. Quanto mais idiotas, melhor. Para se preparar um povo para que seja obediente, medíocre e escravizado para servir o 'Capital' (sem ele, povo, se aperceber), as elites servem-se de uma quantidade de ferramentas que chega a impressionar. Parafraseando Guy Debord -  Para o autor francês, o capitalismo é um dos grandes problemas das sociedades. O pensamento de Debord tem perspectiva marxista e se concentra na crítica radical ao fetichismo da mercadoria, tal como ela se apresenta no seu modo de produção. Um dos pontos fortes do pensamento de Debord é a crítica radical contra a presença de imagens na sociedade – na sua concepção, elas podem induzir à passividade e à aceitação do capitalismo.

Passar duas horas na televisão a transmitir imagens de um velório de uma criança que morreu supostamente afogada pela mãe, acompanhadas de comentários pela Astróloga Cartomante Maia é algo quase tão surrealista que se a cena passa numa televisão num espaço público, como um Café por exemplo, alguém entra e pede ao dono do café para mudar de canal, sujeita-se a ser abatido de imediato.

Ora, eu não necessito de ler um determinado livro para saber se o livro é ou não interessante. Creio existirem vários factores para eu raciocinar se leio ou não, o dito cujo. Uma senhora que diz isto (Clique aqui para ouvir este nojo) não pode escrever livros que me interessem, poderá interessar a uma grande maioria, mas não estou preparado para levar com a ejaculação precoce da senhora, ponto.

Raquel Varela publicou aqui:  https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2016/03/01/o-suicidio-do-pingo-doce/ e partilhou-o no Facebook. Entre mensagens de regozijo e agradecimento, para afirmar de que existe o contraditório apareceram inúmeras mensagens de gente ressabiada que acha que a Raquel Varela não pode criticar um livro porque simplesmente não o leu.

E assim vai Portugal.

20 de fevereiro de 2016

CURIOSA PERSONAGEM, ESTE SARAMAGO. (UMBERTO ECO)

No dia da morte de Umberto Eco, recupero um artigo publicado no DN em 7 de Outubro de 2009.



Um 'blogger' chamado Saramago

 A edição de Os Cadernos de José Saramago em Itália foram vetados pelo accionista da editora habitual do Nobel, Silvio Berlusconi. No entanto, o volume foi publicado naquele país e contou com um prefácio de Umberto Eco. 

O DN reproduziu neste dia  esse texto do filósofo.

Curiosa personagem, este Saramago. Tem oitenta e sete anos e (diz ele) alguns achaques, ganhou o Nobel, distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque seja como for já tem no Panteão o seu lugar garantido (o avaríssimo Harold Bloom definiu-o "o romancista mais dotado de talento ainda em vida… um dos últimos titãs de um género literário em vias de extinção"), eis que aparece a manter um blog onde se mete um pouco com toda a gente, atraindo sobre a sua pessoa polémicas e excomunhões vindas de muitos lados - mais frequentemente não por dizer coisas que não deve dizer mas porque não perde tempo a medir as palavras - e talvez o faça mesmo de propósito.
O quê, ele? Ele que cuida da pontuação ao ponto de a fazer desaparecer, que na sua crítica moral e social nunca leva o problema a peito, mas poeticamente o contorna nos modos do fantástico e do alegórico, de modo que o seu leitor (embora suspeitando que de te fabula narratur) terá de pôr muito de si para compreender até onde vai parar o apólogo - como no seu Ensaio sobre a Cegueira -, faz viajar o leitor numa névoa leitosa em que nem sequer os nomes próprios, de que é bastante parco, dão um sinal claramente reconhecível, ele que no Ensaio sobre a Lucidez faz uma opção política decidida com base em enigmáticos votos em branco? E este escritor fantasioso e metafórico vem dizer-nos despreocupadamente que Bush é de "uma ignorância abissal, e uma expressão verbal confusa perenemente atraída pela irresistível tentação do puro despropósito", cowboy que confundiu o mundo com uma manada de vacas, que não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra), robot mal programado que constantemente mistura mensagens que tem registadas lá dentro, mentiroso compulsivo, corifeu de todos os outros mentirosos que o aplaudiram e serviram nos últimos anos? E este delicado tecelão de parábolas usa palavras que não deixam margem para dúvidas quando define o dono da editora que o publica? E este ateu manifesto, para quem Deus é "o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a este silêncio", repõe Deus em cena para se interrogar sobre o que pensa Ratzinger? E, militante comunista (ainda tenazmente), põe-se a gritar que "a esquerda não tem uma puta ideia do mundo em que vive", e ainda por cima se queixa de não ter tido resposta (sei lá, uma expulsão, uma excomunhão ao menos)? E arrisca-se à acusação de anti-semitismo por ter criticado a política do Governo de Israel simplesmente esquecendo-se, na sua irada participação nas desventuras palestinas, de se lembrar - como uma equilibrada análise pretenderia - que há quem negue o direito à existência de Israel? Mas ninguém leva em conta que quando fala de Israel Saramago pensa em Jahvé, "Deus feroz e rancoroso", e neste sentido não é mais anti-semita do que é anti-ariano e certamente anticristão, dado que para todas as religiões procura ajustar contas com Deus - que evidentemente, chame-se como se chamar nas várias línguas, não cessa de o importunar. E ser importunado por Deus é certamente motivo de ira furibunda contra todos os que dele fazem armadura. 

Ratzinger no seu pior


Berlusconi no seu melhor


 

  

 

 











Se tivesse sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há inventivas e inventivas. Cito (de cor) Borges, que citava (talvez de cor) o doutor Johnson, que citava o facto daquele tal que insultava assim o seu adversário: "Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de ter um bordel, vende tecidos de contrabando." E afinal Saramago não faz cerimónias, ou seja, não o manda dizer por outro e, na sua actividade de comentador diário da realidade que o rodeia, tira a desforra sobre toda a imprecisão sinistra das suas fábulas.
Tem-se falado muito do ateísmo militante de Saramago. Com efeito, a sua polémica não é contra Deus: uma vez admitindo que "a sua eternidade é só a de um eterno não-ser", Saramago poderia estar sossegado. A sua aversão é contra as religiões (e é por isso que o atacam de vários lados, negar Deus é concedido a todos, enquanto polemizar com as religiões põe em causa as estruturas sociais).
Uma vez, precisamente estimulado por uma das intervenções anti-religiosas de Saramago, reflecti sobre a célebre definição de Marx, para quem a religião é o ópio dos povos. Mas é verdade que as religiões têm sempre todas esta virtude soporífera? Saramago várias vezes tem atacado as religiões como fontes de conflito: "As religiões, todas elas, sem excepção, nunca servirão para aproximar e reconciliar os homens; pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos indescritíveis, de chacinas, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da mísera história humana" (La Repubblica, 20 de Setembro de 2001). 


Saramago concluía algures que "se fôssemos todos ateus viveríamos numa sociedade mais pacífica". Não tenho a certeza de que tivesse razão, e parece que indirectamente lhe teria respondido o papa Ratzinger na sua encíclica Spe salvi, em que dizia que é o ateísmo dos séculos XIX e XX, se bem que se tenha apresentado como protesto contra as injustiças do mundo e da história universal, que fez que "de tal premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações da justiça".
Talvez Ratzinger pensasse naqueles sandeus de Lenine e Estaline, mas esquecia-se que nas bandeiras nazis estava escrito "Gott mit uns" (que significa "Deus está connosco"), que falanges de capelães militares benzeram os arruaceiros fascistas, que inspirado em princípios religiosíssimos e apoiado por Guerrilheiros do Cristo-Rei era o massacrador Francisco Franco (independentemente dos crimes dos adversários, foi sempre ele que começou), que religiosíssimos eram os Vandeanos contra os Republicanos, que até tinham inventado uma Deusa Razão, que católicos e protestantes se massacraram alegremente durante anos e anos, que tanto os Cruzados como os seus inimigos eram impelidos por motivações religiosas, que para defender a religião romana se puseram os leões a comer os cristãos, que por razões religiosas se acenderam inúmeras fogueiras, que religiosíssimos são os fundamentalistas muçulmanos, os autores do atentado das Twin Towers, Osama e os talibãs que bombardearam os Budas, que por razões religiosas se opõem a Índia e o Paquistão, e por fim que foi a invocar God Bless America que Bush invadiu o Iraque. 

Bush explicando que num triângulo rectângulo a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa", a frase é o teorema (enunciado matemático que foi comprovado) de Pitágoras, um dos maiores matemáticos da história.

Por isso me punha a reflectir que talvez (se por vezes a religião é ou foi o ópio dos povos) com maior frequência tem sido a sua cocaína. Creio que esta é também a opinião de Saramago e ofereço-lhe a definição - e a sua responsabilidade. Saramago blogger é um zangado. Mas haverá realmente um hiato entre esta prática de indignação diária sobre o transeunte e a actividade de escrita de "opúsculos morais" válidos tanto para os tempos passados como para os futuros? Escrevo este prefácio porque sinto ter alguma experiência em comum com o amigo Saramago, que é a de escrever livros (por um lado) e por outro a de nos ocuparmos de crítica de costumes num semanário. Sendo o segundo tipo de escrita mais claro e divulgador que o outro, muita gente me tem perguntado se eu não despejaria nas pequenas peças periódicas reflexões mais amplas feitas nos livros maiores. Não, respondo eu, ensina-me a experiência (mas creio que o ensina a todos os que se encontrarem em situação análoga) que é o impulso de irritação, a dica satírica, a chicotada crítica escrita à pressa, que fornecerá a seguir o material para uma reflexão ensaística ou narrativa mais desenvolvida. É a escrita diária que inspira as obras de maior empenho, e não o contrário.
E pronto, eu diria que nestes breves escritos Saramago continua a fazer a experiência do mundo tal como desgraçadamente ele é, para depois o rever a uma distância mais serena, sob a forma de moralidade poética (e às vezes pior do que é - embora pareça impossível ir mais longe).
Mas depois, estará realmente sempre assim tão zangado este mestre da filípica e da catilinária? Parece-me que além da gente que ele odeia também existe a gente que ele ama, e eis as peças afectuosas dedicadas a Pessoa (não se é português em vão) ou a Jorge Amado, a Carlos Fuentes, a Federico Mayor, a Chico Buarque de Hollanda, que nos mostram que este escritor é pouco invejoso dos colegas e sabe tecer-lhes delicadas e ternas miniaturas.
Para não falar (e eis o retorno aos grandes temas da sua narrativa) de quando da análise do quotidiano salta para os grandes problemas metafísicos, para a realidade e a aparência, para a natureza da esperança, para como são as coisas quando não estamos a olhar para elas..
Então volta à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado mas meditativo e incerto. Contudo não nos desagrada mesmo quando se enfurece. É simpático.

FONTES:  Diário de Noticias; Google e Fundação José Saramago
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