4 de novembro de 2011

Entre a tolerância e a repressão absoluta

                                                              Corpos de Alugar
     É uma constante da história da humanidade, mas sempre escandalizou os bem-pensantes.
A sexóloga Valéri Tasso, num artigo magnífico na SUPERinteressante 163/Nov/2011 (Edição Portuguesa) recorda as metamorfoses históricas da prostituição.


Certo dia, Keith Chen, professor associado de economia na Universidade de Yale (Estados Unidos), tentou ensinar a alguns símios o que era o dinheiro. Assim, reuniu sete macacos capuchinhos e fê-los conviver numa jaula grande e semi-aberta. Regularmente, oferecia-lhes um disco de metal perfurado no meio e propunha-lhes um acordo: de cada vez que um dos primatas lhe devolvesse a peça, dava-lhe uvas ou quadradinhos de gelatina em jeito de recompensa. Os animais entenderam facilmente o jogo, mas o economista norte-americano começou a complicar as coisas: aumentou o número de moedas necessário para obter o brinde alimentar e oferecia diferentes petiscos a preços distintos, até que um dos macacos, chamado Félix, foi directamente à fonte dos discos metálicos e pegou nos doze que iam ser distribuídos pelos seus congéneres. Quando os investigadores entraram na jaula, os símios recusaram devolvê-los, demonstrando que conheciam o valor dos bens para efectuar a troca. Todavia, o aspecto mais curioso foi o que aconteceu num canto da jaula, quando Chen observou um macho a entregar uma das moedas a uma fêmea. Pensou, instantaneamente, no altruísmo do gesto, mas verificou que os dois animais se punham, de imediato, a praticar sexo com entusiasmo. Quando o ato carnal terminou, a fêmea aproximou-se de Chen e comprou-lhe um cacho de uvas. Acabava de se prostituir?
Uma surpresa semelhante aguardava os etólogos Lloyd Davis, da Universidade de Otago (Nova Zelândia), e Fiona Hunter, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), quando estudavam uma colónia de pinguins-de-adélia na Antárctida. Devido à humidade existente na zona, as aves vêem-se obrigadas a construir os ninhos sobre montículos de pedrinhas. O problema é que os seixos não abundam por ali, pelo que constituem um bem precioso. A reacção habitual perante a escassez de matéria-prima é o roubo. Assim, quando um exemplar se aproxima do local de nidificação de outro e tira pedras, dá origem ao previsível conflito no seio da comunidade. No entanto, os cientistas observaram que algumas fêmeas voltavam com os troféus sem que a ordem social do grupo se alterasse. Concentraram a atenção num destes exemplares femininos e constataram que obtinha pedrinhas sem entrar em disputa com os seus proprietários em troca de acasalar com eles. Nesse caso, as fêmeas de pinguim também se prostituem?
Por prostituição, queremos dizer a actividade profissional que consiste na prestação de um serviço de carácter sexual a troco de uma retribuição económica. Que os seres humanos, os pinguins, os macacos capuchinhos ou os dragões-de-komodo executem todas as suas acções a pensar numa recompensa (económica, moral, intelectual, neurótica) é algo mais do que evidente. Sem a possibilidade de satisfação, não há acto.
                                                        Por interesse te quero
Quando nos juntamos com alguém (e essa união também inclui, obviamente, os corpos), a aspiração de benefício está sempre subjacente. Tanto faz se o laço é formalmente consagrado como matrimonial ou não, se for estabelecido “para toda a vida” ou durar apenas uma noite, ou se o estado emocional que o promoveu é um desejo libidinoso ou um amor sublime (não será este o apogeu do anseio de recompensa?). O certo é que, por detrás de qualquer associação, há sempre uma expectativa de gratificação; quando esta não é cumprida e achamos que não iremos obtê-la ou procuramos outro tipo de compensação, a ligação dissolve-se: põe-se fim à relação ou o amor acaba.
Encontro no Mosteiro


... O comércio carnal possui múltiplos rostos, desde os anúncios mais sórdidos à sofisticação dos lugarejos de luxo.
…Durante a Baixa Idade Média, houve uma certa permissividade e alguns conventos ofereciam os serviços de meretrizes.
… Na origem, as cortesãs eram mulheres de condição humilde mantidas por nobres. Algumas não se destacaram apenas pelas artes eróticas.





A história de algumas grandes mulheres ficou associada ao exercício da prostituição, por vezes com fundamento; outras, para difamar os respectivos méritos.

Aspásia de Mileto (século V a.C.) - O seu nome será sempre associado ao de Péricles, que seduziu no papel de Hetera, uma prostituta de nível superior. Mulher brilhante de vasta cultura e retórica requintada, frequentou e protegeu os maiores intelectuais da época, de Sócrates a Platão. A sua figura inspirou escritores, historiadores e pensadores.
Friné em frente ao Areópago, 1861,Jean-Léon Gérôme.

Friné (século IV a. C.) - Alcunha da cortesã beócia Mnésareté. Foi amante e musa do escultor Praxíteles, que a escolheu para modelo da sua Afrodite de Cnido, talvez a primeira escultura grega em que uma deusa surge quase nua. Acusada de perversão e falta de pudor, foi defendida pelo maior retórico da época, Hipérides. O orador, ao perceber que os seus argumentos não convenciam, pediu a Friné para tirar a roupa. Os juízes absolveram-na, pois não se atreveram a privar o mundo da sua beleza.


Taís (século IV a.C.) - Embora tivesse sido contratada pelo soberano egípcio Ptolomeu I para o acompanhar na campanha de Alexandre Magno contra os persas, acabou por partilhar os seus encantos com ambos. São atribuídos a Taís acontecimentos como o incêndio de Persépolis. Em A Divina Comédia, Dante condenou-a a habitar o Oitavo Circulo do Inferno.
Maria Madalena





Maria Madalena (século I) - Figura conceptual, mais do que histórica, mencionada no Novo Testamento e em evangelhos apócrifos. Foi discípula e talvez companheira de Jesus. Representa a figura da prostituta redimida pela mensagem de Cristo.
Messalina (século I) - Esposa e conselheira do imperador Cláudio, dizia-se que, não contente com os seus inúmeros amantes, se prostituiu num bairro humilde de Roma. Teria também desafiado o grémio de cortesãs para ver quem era capaz de satisfazer mais homens numa noite. Venceu. Foi decapitada quando se descobriu que instigou uma conspiração contra o marido.
Teodora (século VI) - Passou de humilde prostituta a imperatriz bizantina. Sob o reinado do marido, Justiniano I, promulgou a primeira legislação de que se tem conhecimento sobre o aborto, além de uma lei do divórcio que permitia ser a mulher a pedi-lo. No entanto, o historiador Procópio descreve-a como sendo um animal luxurioso guiado por instintos carnais.
Madame de Pompadour (século XVIII) - Esta cortesã do reinado de Luís XV de França adquiriu o título de duquesa e marquesa de Pompadour e marquesa de Menars. Culta e sofisticada, protegeu os enciclopedistas.
Madame Claude (século XX) - Nascida com o nome de Fernande Grudet, em 1923, fundou um bordel de luxo em Paris, nos anos 60. Foi a primeira a fazer com que as suas mulheres comparecessem em encontros sexuais em qualquer parte do mundo mediante marcação telefónica prévia, criando assim o termo (ainda utilizado) de call girl.

...A família tradicional, por exemplo, essa unidade cultural tão profundamente enraizada na nossa couraça social, política e económica (e que, como um dos pilares de suporte, sustenta o imenso edifício moral que criámos), é também a viga que define e suporta o ofício da prostituição. Não é por acaso que ambas as instituições possuem a mesma antiguidade.
No entanto, a erradicação do comércio carnal (tal como o definimos no início), no caso de ser naturalmente possível, passaria irremediavelmente pela necessidade de construir a sociedade de outra forma, por procurar novas arquitecturas. Por outro lado, para a regulamentação ser eficaz e plácida, terá de ser acompanhada pela adopção de uma postura moral (cultural) que a legitime plenamente.
Enquanto nem uma coisa nem outra se verificarem, continuaremos mergulhados na insensatez e na desordem; e a meretriz (nome que provém etimologicamente do latim mereo, "merecedora do que ganha") será uma excluída necessária, em vez de uma recordação do passado ou de uma profissão assumida. 


Artigo Completo: SUPERinteressante Nº163 Novembro 2011 (Edição Portuguesa)


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