No dia da morte de Umberto Eco, recupero um artigo publicado no DN em 7 de Outubro de 2009.
Se tivesse sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há inventivas e inventivas. Cito (de cor) Borges, que citava (talvez de cor) o doutor Johnson, que citava o facto daquele tal que insultava assim o seu adversário: "Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de ter um bordel, vende tecidos de contrabando." E afinal Saramago não faz cerimónias, ou seja, não o manda dizer por outro e, na sua actividade de comentador diário da realidade que o rodeia, tira a desforra sobre toda a imprecisão sinistra das suas fábulas.
Um 'blogger' chamado Saramago
A edição de Os Cadernos de José Saramago em Itália foram vetados pelo accionista da editora habitual do Nobel, Silvio Berlusconi. No entanto, o volume foi publicado naquele país e contou com um prefácio de Umberto Eco.
O DN reproduziu neste dia esse texto do filósofo.
Curiosa personagem, este Saramago. Tem
oitenta e sete anos e (diz ele) alguns achaques, ganhou o Nobel,
distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque seja como
for já tem no Panteão o seu lugar garantido (o avaríssimo Harold Bloom
definiu-o "o romancista mais dotado de talento ainda em vida… um dos
últimos titãs de um género literário em vias de extinção"), eis que
aparece a manter um blog onde se mete um pouco com toda a gente,
atraindo sobre a sua pessoa polémicas e excomunhões vindas de muitos
lados - mais frequentemente não por dizer coisas que não deve dizer mas
porque não perde tempo a medir as palavras - e talvez o faça mesmo de
propósito.
O quê, ele? Ele que cuida
da pontuação ao ponto de a fazer desaparecer, que na sua crítica moral e
social nunca leva o problema a peito, mas poeticamente o contorna nos
modos do fantástico e do alegórico, de modo que o seu leitor (embora
suspeitando que de te fabula narratur) terá de pôr muito de si para
compreender até onde vai parar o apólogo - como no seu Ensaio sobre a
Cegueira -, faz viajar o leitor numa névoa leitosa em que nem sequer os
nomes próprios, de que é bastante parco, dão um sinal claramente
reconhecível, ele que no Ensaio sobre a Lucidez faz uma opção política
decidida com base em enigmáticos votos em branco? E este escritor
fantasioso e metafórico vem dizer-nos despreocupadamente que Bush é de
"uma ignorância abissal, e uma expressão verbal confusa perenemente
atraída pela irresistível tentação do puro despropósito", cowboy que
confundiu o mundo com uma manada de vacas, que não sabemos sequer se
pensa (no sentido nobre da palavra), robot mal programado que
constantemente mistura mensagens que tem registadas lá dentro, mentiroso
compulsivo, corifeu de todos os outros mentirosos que o aplaudiram e
serviram nos últimos anos? E este delicado tecelão de parábolas usa
palavras que não deixam margem para dúvidas quando define o dono da
editora que o publica? E este ateu manifesto, para quem Deus é "o
silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a este silêncio",
repõe Deus em cena para se interrogar sobre o que pensa Ratzinger? E,
militante comunista (ainda tenazmente), põe-se a gritar que "a esquerda
não tem uma puta ideia do mundo em que vive", e ainda por cima se queixa
de não ter tido resposta (sei lá, uma expulsão, uma excomunhão ao
menos)? E arrisca-se à acusação de anti-semitismo por ter criticado a
política do Governo de Israel simplesmente esquecendo-se, na sua irada
participação nas desventuras palestinas, de se lembrar - como uma
equilibrada análise pretenderia - que há quem negue o direito à
existência de Israel? Mas ninguém leva em conta que quando fala de
Israel Saramago pensa em Jahvé, "Deus feroz e rancoroso", e neste
sentido não é mais anti-semita do que é anti-ariano e certamente
anticristão, dado que para todas as religiões procura ajustar contas com
Deus - que evidentemente, chame-se como se chamar nas várias línguas,
não cessa de o importunar. E ser importunado por Deus é certamente
motivo de ira furibunda contra todos os que dele fazem armadura.
Ratzinger no seu pior |
Berlusconi no seu melhor |
Se tivesse sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há inventivas e inventivas. Cito (de cor) Borges, que citava (talvez de cor) o doutor Johnson, que citava o facto daquele tal que insultava assim o seu adversário: "Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de ter um bordel, vende tecidos de contrabando." E afinal Saramago não faz cerimónias, ou seja, não o manda dizer por outro e, na sua actividade de comentador diário da realidade que o rodeia, tira a desforra sobre toda a imprecisão sinistra das suas fábulas.
Tem-se falado muito do
ateísmo militante de Saramago. Com efeito, a sua polémica não é contra
Deus: uma vez admitindo que "a sua eternidade é só a de um eterno
não-ser", Saramago poderia estar sossegado. A sua aversão é contra as
religiões (e é por isso que o atacam de vários lados, negar Deus é
concedido a todos, enquanto polemizar com as religiões põe em causa as
estruturas sociais).
Uma vez,
precisamente estimulado por uma das intervenções anti-religiosas de
Saramago, reflecti sobre a célebre definição de Marx, para quem a
religião é o ópio dos povos. Mas é verdade que as religiões têm sempre
todas esta virtude soporífera? Saramago várias vezes tem atacado as
religiões como fontes de conflito: "As religiões, todas elas, sem
excepção, nunca servirão para aproximar e reconciliar os homens; pelo
contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos indescritíveis,
de chacinas, de monstruosas violências físicas e espirituais que
constituem um dos mais tenebrosos capítulos da mísera história humana"
(La Repubblica, 20 de Setembro de 2001).
Saramago concluía algures que "se fôssemos
todos ateus viveríamos numa sociedade mais pacífica". Não tenho a
certeza de que tivesse razão, e parece que indirectamente lhe teria
respondido o papa Ratzinger na sua encíclica Spe salvi, em que dizia que
é o ateísmo dos séculos XIX e XX, se bem que se tenha apresentado como
protesto contra as injustiças do mundo e da história universal, que fez
que "de tal premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações
da justiça".
Talvez Ratzinger pensasse
naqueles sandeus de Lenine e Estaline, mas esquecia-se que nas
bandeiras nazis estava escrito "Gott mit uns" (que significa "Deus está
connosco"), que falanges de capelães militares benzeram os arruaceiros
fascistas, que inspirado em princípios religiosíssimos e apoiado por
Guerrilheiros do Cristo-Rei era o massacrador Francisco Franco
(independentemente dos crimes dos adversários, foi sempre ele que
começou), que religiosíssimos eram os Vandeanos contra os Republicanos,
que até tinham inventado uma Deusa Razão, que católicos e protestantes
se massacraram alegremente durante anos e anos, que tanto os Cruzados
como os seus inimigos eram impelidos por motivações religiosas, que para
defender a religião romana se puseram os leões a comer os cristãos, que
por razões religiosas se acenderam inúmeras fogueiras, que
religiosíssimos são os fundamentalistas muçulmanos, os autores do
atentado das Twin Towers, Osama e os talibãs que bombardearam os Budas,
que por razões religiosas se opõem a Índia e o Paquistão, e por fim que
foi a invocar God Bless America que Bush invadiu o Iraque.
Por isso
me punha a reflectir que talvez (se por vezes a religião é ou foi o ópio
dos povos) com maior frequência tem sido a sua cocaína. Creio que esta é
também a opinião de Saramago e ofereço-lhe a definição - e a sua
responsabilidade. Saramago blogger é um zangado. Mas haverá realmente um
hiato entre esta prática de indignação diária sobre o transeunte e a
actividade de escrita de "opúsculos morais" válidos tanto para os tempos
passados como para os futuros? Escrevo este prefácio porque sinto ter
alguma experiência em comum com o amigo Saramago, que é a de escrever
livros (por um lado) e por outro a de nos ocuparmos de crítica de
costumes num semanário. Sendo o segundo tipo de escrita mais claro e
divulgador que o outro, muita gente me tem perguntado se eu não
despejaria nas pequenas peças periódicas reflexões mais amplas feitas
nos livros maiores. Não, respondo eu, ensina-me a experiência (mas creio
que o ensina a todos os que se encontrarem em situação análoga) que é o
impulso de irritação, a dica satírica, a chicotada crítica escrita à
pressa, que fornecerá a seguir o material para uma reflexão ensaística
ou narrativa mais desenvolvida. É a escrita diária que inspira as obras
de maior empenho, e não o contrário.
E
pronto, eu diria que nestes breves escritos Saramago continua a fazer a
experiência do mundo tal como desgraçadamente ele é, para depois o
rever a uma distância mais serena, sob a forma de moralidade poética (e
às vezes pior do que é - embora pareça impossível ir mais longe).
Mas
depois, estará realmente sempre assim tão zangado este mestre da
filípica e da catilinária? Parece-me que além da gente que ele odeia
também existe a gente que ele ama, e eis as peças afectuosas dedicadas a
Pessoa (não se é português em vão) ou a Jorge Amado, a Carlos Fuentes, a
Federico Mayor, a Chico Buarque de Hollanda, que nos mostram que este
escritor é pouco invejoso dos colegas e sabe tecer-lhes delicadas e
ternas miniaturas.
Para não falar (e
eis o retorno aos grandes temas da sua narrativa) de quando da análise
do quotidiano salta para os grandes problemas metafísicos, para a
realidade e a aparência, para a natureza da esperança, para como são as
coisas quando não estamos a olhar para elas..
Então
volta à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado mas
meditativo e incerto. Contudo não nos desagrada mesmo quando se
enfurece. É simpático.
FONTES: Diário de Noticias; Google e Fundação José Saramago
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