5 de junho de 2010

Ao contrário de Nurse Jackie

   

   A infidelidade feminina é mais grave e definitiva, não porque seja moralmente mais condenável, mas porque é mais sintomática.
   Um homem pode ser infiel à sua mulher e, porém, amá-la incondicionalmente.
   Uma mulher infiel já não ama o seu marido.


As vezes digo, entre amigos: "A infidelidade feminina é mui­to mais grave e definitiva do que a masculina» - e de ime­diato me caem em cima o Carmo, a Trindade e o obelisco do Cutileiro, objecto ainda por cima assaz percutante. As primeiras a protestar são as senhoras: que diabo é isso, no século XXI, és um quadrado, vai dar banho ao cão. Os segundos são os homens sedutores, de repente urgentes de capitalizar a minha falta: era o que faltava, nem pensar, os direitos são iguais e os deveres tam­bém, eu ao sábado aspiro a casa e tudo. E os terceiros, com excepção de um ou outro abençoado que faz um esforço por divisar o que estou a tentar estabelecer, são todos ao mesmo tempo: mas porque é que uma infidelidade é pior do que a outra, se em qualquer dos casos consiste numa traição, ao outro e a nós próprios, se não mesmo a todo o género humano?
Acho curioso que tantos concebam que um dilema de tal forma fundador para a espécie possa ser desvendado com base apenas nos preceitos da Constituição da República. E acho mais curioso ainda que muitos daqueles que conseguem, enfim, abstrair-se da esfera banal dos direitos e dos deveres não cheguem nunca a transcender o âmbito da moral. Porque aquilo de que estou a falar não é um problema político, nem sequer social: é emo­cional mesmo. A infidelidade feminina é mais grave e definitiva, não porque seja moralmente mais condenável do que a masculina (são ambas moralmente muito condenáveis, tanto quanto me parece), mas porque é mais sintomática. Diz uma velha frase de t-shirt que, para cometer uma infidelidade, a mulher precisa de um motivo, enquanto o homem só precisa de uma mulher. E eu próprio lhe chamaria "um tre­mendíssimo cliché», se não se desse a circunstância de, regra geral (que é o que interessa para este tipo de generalização exaltada), ser absolu­tamente verdade.
Eu podia dar o exemplo da biologia (e não há nada mais poderoso do que a biologia): ao contrário do homem, uma mulher pode engra­vidar de outro e dar ao esposo, sem que ele sequer chegue a sabê-lo, um filho que não é dele. Só isso já desequilibra os pratos da balança. Mas nem sequer é preciso irmos tão longe. Um casamento pode sobreviver a um homem infiel e pode sobreviver a uma mulher infiel também. Um casamento são duas pessoas que estão juntas e, felizmente, as razões por que as pessoas estão juntas não se reduzem ao sentimento. Coisa diferente, porém, é o amor propriamente dito. Um homem pode ser infiel à sua mulher e, no entanto, amá-la eterna e incondicionalmente. Uma mulher infiel simplesmente já não ama o seu marido. Pode gostar dele. Pode ter pena dele. Pode estimar a vida que os dois têm juntos: as rotinas, os objectos, os lugares, os cheiros, as pessoas. Mas pode vi­ver sem eles também  e sabe-o. Porque, sendo tão capaz como o homem de ausentar-se do seu corpo, não será capaz nunca de ausentar-se das suas emoções. E porque, se o fizer, já não encon­trará o caminho de regresso.
A infidelidade feminina é mais grave e sinto­mática porque (e perdoem-me o recurso new age, juro que não se repete) a mulher tem mais inteligência emocional do que o homem. Porque tem mais auto-domínio, talvez, mas sobre­tudo porque tem outra capacidade de ver o big picture e de agir em prol da sua preservação. As mulheres são mais calculistas. Os homens mais românticos. De resto, e que todos somos dotados da mesma natureza poligâmica, nem sequer discuto. Que infidelidade e traição nem sempre são uma e a mesma coisa, menos ainda. O que sei é: se os homens lidam muito pior com a traição, há uma razão muito clara para isso. Os homens são inseguros. Mas são-no precisamente porque sabem que, no dia em que foram traídos, todo o seu mundo ruiu. O melhor mesmo é não desco­brir nunca. Assim como assim, nós nunca tivemos a presunção de saber tudo  e, desde que também não desconfiemos, felizes viveremos com a nossa ignorância.

In 'Noticias Sábado' 230 por Joel Neto

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